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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 1986 Nora Roberts. Todos os direitos reservados.

DESEJOS SECRETOS, N.º 128 - Abril 2013

Título original: A Will and a Way

Publicada originalmente por Silhouette® Books

Publicado em português em 2007

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2941-1

Editor responsável: Luis Pugni

Imagens de capa:

Casal: DAVID DE LOSSY/GETTY IMAGES

Casa: RYAN MACVAY/GETTY IMAGES

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Cento e cinquenta milhões de dólares não era uma quantia que se desprezasse. Pelo menos, ninguém na vasta biblioteca da mansão do seu tio Jolley se atrevia a desdenhá-la. Excepto Pandora.

Espirrou, consequência da sua constipação. Depois de assoar o nariz, sentou-se muito direita, desejando que a medicação que tomara fizesse, finalmente, efeito. E desejando, ainda mais, estar em qualquer outro sítio, menos ali.

Encontrava-se rodeada de dezenas de livros que nunca lera e de centenas que nem sequer conhecia, embora tivesse passado muitas horas naquela biblioteca. O cheiro dos volumes encadernados em couro misturava-se com o cheiro a pó. Num canto da sala havia um tabuleiro de xadrez de mármore e marfim, onde perdera muitos jogos. O tio Jolley, com a sua falsa expressão inocente, sempre fora um batoteiro compulsivo. Pandora nunca encarara isso com calma. Talvez por isso se tivesse divertido tanto a ganhar-lhe, com artimanhas ou sem elas.

Através das janelas em forma de arco entrava uma luz fraca, mortiça. Uma luz que correspondia perfeitamente ao seu estado de espírito, assim como também ao que estava prestes a acontecer. Sentiria falta do seu tio Jolley, com o seu redondo rosto de querubim, da sua voz melodiosa e do seu humor atrevido, malicioso. Do seu enorme retrato a óleo, na parede principal da biblioteca, parecia olhar para ela com o seu sorriso característico e enigmático. Na verdade, já sentia a falta dele. Nenhum outro membro da sua família a compreendera e aceitara tanto como ele.

Triste e deprimida, Pandora continuou a ouvir o executor testamentário Edmund Fitzhugh, enquanto lia o prolixo preâmbulo do testamento do seu tio. Maximillian Jolley McVie nunca se caracterizara pela sua brevidade. Costumava dizer sempre que, quando há que fazer alguma coisa, há que fazê-la a sério, até às suas últimas consequências. Até na sua última vontade fora fiel àquele princípio.

Sem se incomodar em disfarçar o seu desinteresse por aquelas formalidades, Pandora percorreu os presentes com o olhar. Ali estava o único filho ainda vivo de Jolley, o tio Carlson, e a sua esposa... Como se chamava...? Lona... Mona? Acaso importava? Estavam sentados muito direitos, atentos à leitura. Faziam-lhe lembrar corvos pousados em cima de uma linha de telefone, à espera que alguma presa caísse aos seus pés.

A prima Ginger, tão doce e bonita como vã e frívola. Aquele mês tinha o cabelo pintado de loiro, à Jean Harlow. E o primo Biff, com o seu fato preto. Tinha um aspecto perfeitamente relaxado, como se estivesse a ver um jogo de pólo, mas Pandora estava convencida de que não lhe estava a escapar uma única palavra. A sua esposa... Laurie?, tinha uma expressão discreta e recatada. Nunca pronunciava uma única palavra que se afastasse do que Biff dissera previamente. O tio Jolley costumava chamar-lhe «estúpida» e «entediante». Embora detestasse ser tão cínica, Pandora não tinha tido outro remédio a não ser dar-lhe razão.

E ali estava o tio Morgan, gordo e satisfeito, a fumar um grande charuto, apesar da sua irmã, Patience, não parar de afastar o fumo, agitando um lenço branco diante do seu nariz. «Ou, mais precisamente, pelo nariz», corrigiu-se Pandora. Nada agradava mais ao seu tio que incomodar a sua irmã, que, incompreensivelmente, se desvelava por ele.

Também estava presente o tio Hank, bem constituído e musculado, embora pouco mais do que a sua atlética esposa, Meg. A sua lua-de-mel fora dedicada a percorrer os Apalaches. O tio Jolley costumava interrogar-se se fariam alongamentos e exercícios de aquecimento antes de fazerem amor...

Aquela recordação provocou-lhe uma gargalhada, que teve de conter levando o lenço ao nariz, exactamente antes de o seu primo Michael olhar para ela. Ou seria seu primo em segundo grau? De qualquer forma, não eram parentes consanguíneos.

Nunca se tinham dado bem, embora soubesse que o tio Jolley gostara muito dele. Na opinião de Pandora, qualquer pessoa que ganhasse a vida a escrever guiões para séries estúpidas de televisão devia ser uma espécie de parasita. Sentiu uma fugaz sensação de prazer ao relembrar o momento exacto em que lho dissera na cara. Depois, como é óbvio, havia as mulheres. Quando um homem saía com cantoras e modelos, era evidente que não estava interessado em pessoas que o estimulassem intelectualmente. Assim o dissera a Michael durante a sua última visita à mansão do seu tio, conhecida por todos como Folley. O idoso quase morrera de tanto rir.

Mas Jolley morrera. E sinceramente tinha de admitir que, de todos os presentes, Michael Donahue fora quem mais amara e quem mais se preocupara com o seu tio. À excepção da própria Pandora, como é claro. O que parecia ir contra a expressão que tinha naquele momento; desinteressada e, até mesmo, levemente arrogante.

O tio Jolley gostava tanto dele que até quisera casá-los. Uma ideia que Pandora se apressara a tirar-lhe da cabeça. O seu aspecto físico agradava-lhe, não podia negá-lo. Era alto e magro, de cabelo escuro. Mas tinha um olhar tão frio e distante...

Ainda assim, era uma pena que não combinassem um com o outro. Teria gostado de partilhar com alguém as lembranças do seu tio. Mas não fazia sentido pensar naquilo. Se se tivessem sentado juntos, por aquela altura já se teriam destruído verbalmente um ao outro. E o velho Jolley, sorrindo-lhe do seu retrato, sabia disso perfeitamente.

Com um suspiro, esforçou-se para prestar atenção ao que Fitzhugh estava a dizer. Estava a falar de um donativo para as baleias. Ou algo do género.

Michael continuava a aguentar estoicamente a leitura enfadonha do testamento. Pensou com um suspiro que a razão de ele estar ali era o muito que gostara daquele velho louco. A última coisa que podia fazer pelo pobre Jolley era o que estava a fazer naquele momento: fechar-se numa sala com um grupo de abutres a ouvir aquela enxurrada interminável de termos jurídicos. Quando aquilo tudo acabasse, servir-se-ia de um bom copo de brandy e brindaria ao falecido a sós. Jolley costumava ter sempre guardada uma boa provisão de brandy.

Quando Michael era um jovem rebelde e sonhador, incompreendido pelos seus pais, o tio Jolley ouvira-o e encorajara-o para continuar a sonhar. Invariavelmente, sempre que o vira desanimado o seu tio impulsionara-o a escrever. E Michael não o esquecera.

Estava cheio de vontade de fumar. Só deixara de fumar há dois dias. Dois dias, quatro horas e trinta e cinco minutos. Sentia-se sufocado naquela sala, fechado com aquela gente. Para todos, o velho Jolley não passara de um louco e de uma chatice. Mas o seu património, avaliado em cento e cinquenta milhões de dólares, já era um assunto diferente. Duvidava que algum deles, alguma vez tivesse posto os pés naquele casarão velho, repleto de antiguidades valiosas. À excepção de Pandora, admitiu contrariado. Ela, sim, adorava Jolley.

Naquele momento, parecia triste, abatida. Michael acreditava nunca a ter visto tão triste: furiosa sim, desdenhosa, irritante... mas nunca triste. Se não a conhecesse melhor, ter-se-ia sentado ao seu lado e teria oferecido o seu consolo, ter-lhe-ia dado a mão... Embora, o mais certo fosse ela torcer-lhe o pulso.

Mesmo assim, os seus olhos surpreendentemente azuis estavam avermelhados, irritados. Quase tão vermelhos como o seu cabelo, pensou enquanto admirava os cabelos que caíam sobre os seus ombros. Estava tão pálida que conseguia distinguir as sardas que salpicavam o seu nariz.

Sentada no meio dos seus familiares sombrios, destacava-se como um pássaro exótico rodeado de corvos. Usava um vestido azul brilhante. Michael aprovava a sua escolha, embora não lhe tivesse dirigido a palavra. Não precisava de vestir preto para chorar um ente querido.

De forma quase sistemática, Pandora chateara-o com as suas opiniões acerca do seu trabalho e do seu estilo de vida. E sempre que tinham entrado em conflito, Michael não hesitara em criticá-la. Afinal de contas, era uma mulher brilhante e talentosa que se contentava em desenhar jóias extravagantes para boutiques extravagantes, em vez de aproveitar devidamente a sua formação.

Ela chamava-lhe materialista e ele acusava-a de ser idealista. Ela catalogava-o como machista e ele como pseudo-intelectual. O velho Jolley costumava divertir-se muito com as suas discussões, rindo-se às gargalhadas. Mas agora que ele já não estava lá, pensou Michael, aqueles confrontos acabariam. Era estranho, mas aquele era outro dos motivos pelo qual sentiria falta do seu tio.

A verdade era que nunca sentira nenhum laço familiar forte com ninguém, à excepção de Jolley. Michael não pensava frequentemente na sua família. O seu pai estava algures na Europa com a segunda mulher e a sua mãe integrara tranquilamente a sociedade de Palm Springs com o terceiro marido. Nunca percebera por que razão o seu filho decidira ganhar a vida em algo tão terrivelmente vulgar como a televisão.

Mas Jolley percebera e dera-lhe valor. E, o que ainda era mais importante para Michael, apreciara o seu trabalho. Um sorriso apareceu nos seus lábios quando Fitzhugh leu o trecho do donativo à organização defensora das baleias. Aquilo era tão típico de Jolley! Um leve burburinho de irritação surgiu entre os presentes. Cento e cinquenta mil dólares acabavam de escapar por entre as suas garras. Michael observou o retrato enorme a óleo. «Teve sempre de ter a última palavra, velho louco!», pensou ele. «É pena que não esteja aqui neste momento para se rir deles...».

– Ao meu filho, Carlson, ...

O burburinho esmoreceu enquanto Fitzhugh aclarava a voz. Sem muito interesse, Pandora viu como os seus parentes voltavam a prestar atenção. Os empregados e as organizações de solidariedade já tinham levado a sua parte. Agora começava o grosso do bolo. O executor testamentário levantou o olhar antes de continuar:

– ... cuja mediocridade sempre foi um mistério para mim, deixo-lhe a minha colecção de truques de magia, na esperança de que consiga desenvolver algum tipo de noção do ridículo.

Pandora reparou divertida como o seu tio ficava vermelho como um tomate.

– Ao meu neto, Bradley, e à sua esposa, a minha neta Lorraine, deixo-lhes os meus sinceros parabéns. Não precisam de mais nada, uma vez que já têm tudo.

Daquela vez, Pandora teve de conter as lágrimas perante aquela referência aos seus pais. Naquela mesma tarde telefonara-lhes para Zanzibar.

– Ao meu sobrinho Morgan, que ainda guarda o primeiro dólar que ganhou, deixo-lhe o último que ganhei, com moldura incluída. À minha sobrinha, Patience, deixo a minha casa de campo de Key West, sem muitas esperanças de que, alguma vez, chegue a ter a coragem de a usar.

Morgan engasgou-se com uma baforada de fumo, enquanto Patience adoptava uma expressão de verdadeiro horror.

– Ao meu sobrinho neto, Biff, deixo-lhe a minha colecção de caixas de fósforos, na esperança de que, finalmente, algum dia chegue a incendiar o mundo. À minha linda sobrinha neta, Ginger, tão amiga de se ver ao espelho, deixo-lhe o espelho emoldurado em prata que pertenceu a Maria Antonieta. Ao meu sobrinho neto Hank deixo a soma de três mil quinhentos e vinte e oito dólares. Suficiente, acho eu, para uma provisão vitalícia de gérmen de trigo, muito bom para a saúde.

O murmúrio que se levantou com a primeira herança foi aumentando, banhado de um sentimento de raiva e indignação: precisamente o que Jolley teria esperado. Foi nesse instante que Pandora cometeu o erro de olhar para Michael. Já não parecia tão frio e distante. A sua expressão era de admiração. Quando os seus olhares se encontraram, Pandora deixou escapar a gargalhada que estivera a conter, pelo que vários dos presentes olharam para ela com uma expressão sisuda e recriminatória.

Carlson não conseguiu resistir e levantou-se de repente.

– Senhor Fitzhugh, o testamento do meu pai não passa de uma brincadeira. É óbvio que não estava no seu perfeito juízo quando o redigiu, de modo que não tenho a menor dúvida de que será impugnado por um tribunal.

– Senhor McVie – o executor testamentário aclarou novamente a voz. Por trás das janelas o céu estava a ficar cada vez mais nublado, mas ninguém parecia notar. – Compreendo perfeitamente os seus sentimentos. No entanto, o meu cliente encontrava-se num estado de absoluta lucidez quando me encarregou de recolher a sua última vontade. É perfeitamente legal. Como é óbvio, o senhor é livre de consultar o seu advogado. Entretanto, tenho de avançar com a leitura...

– Isto é tudo uma estupidez! – resmungou Morgan, mordendo o seu charuto e olhando à sua volta. – Uma estupidez! – repetiu enquanto a sua irmã Patience lhe dava palmadinhas no braço, numa tentativa vã de o acalmar.

– E então? O tio Jolley gostava destas coisas – rebentou Pandora. – Se tivesse querido deixar a sua fortuna à Sociedade para a Prevenção da Estupidez, teria estado no seu direito.

– Isso é muito fácil de dizer, minha querida – interveio Biff, brincalhão. – Mas acalma-te, espera para veres o que te calhou a ti. É muito provável que aquele velho louco te tenha deixado um simples fio para enfiares as tuas pérolas.

– Recordo-te que ainda não tens aqueles fósforos, amigo! – interveio Michael. Estava encostado à parede, num canto da sala, e todos os olhares se viraram para ele. – Lembra-te que brincar com o fogo é sempre perigoso.

– Porque não o deixam acabar de ler o testamento, de uma vez por todas? – perguntou Ginger, bastante satisfeita com o que recebera como herança. Um espelho de Maria Antonieta devia valer uma fortuna.

– As duas últimas heranças estão ligadas – Fitzhugh avançou com a leitura antes que pudesse sofrer mais interrupções. – E são, certamente, um tanto... heterodoxas.

– O documento todo é heterodoxo – resmungou Carlson. Várias cabeças assentiram em sinal de aprovação.

Pandora lembrou-se por que razão sempre evitara as reuniões familiares: aborreciam-na extremamente. De propósito, levou uma mão à boca e conteve um bocejo.

– Senhor Fitzhugh, podemos ouvir o resto do testamento, antes que a minha família continue a cair no ridículo?

– O que vem a seguir são as palavras exactas que o senhor McVie utilizou – interrompeu-se por um momento, para criar expectativa ou para arranjar coragem. – A Pandora McVie e a Michael Donahue, os dois membros da minha família que mais alegrias me deram nestes últimos anos de vida, deixo o resto das minhas propriedades, todas as minhas contas bancárias, acções e títulos, todo o meu património mobiliário e imobiliário, com todo o meu carinho. Para que o partilhem em conjunto.

Pandora não chegou a ouvir as diferentes objecções e protestos que se seguiram àquelas palavras. Surpreendida e irritada levantou-se da cadeira.

– Não posso aceitar o dinheiro dele – com grande rapidez, colocou-se diante de Fitzhugh. O executor testamentário, que não esperara um ataque daquele lado, olhou estupefacto para ela. – Eu não saberia o que fazer com esta fortuna. Desorientava-me a vida. Deviam ter-me perguntado primeiro...

– Menina McVie...

Antes que o executor testamentário pudesse acrescentar alguma palavra, Pandora virou-se para Michael.

– Podes ficar com tudo, se quiseres. Afinal de contas, tu saberias o que fazer com este dinheiro. Podias comprar um hotel em Nova Iorque, um apartamento em Los Angeles, um clube em Chicago e um avião para andares de um lado para o outro. É-me indiferente.

Com um tom perfeitamente tranquilo e as mãos enfiadas nos bolsos, Michael replicou:

– Agradeço a tua oferta, prima. Mas antes, que tal esperarmos até o senhor Fitzhugh acabar de ler o testamento?

Ficou a olhar fixamente para ele. Depois, suspirou e pronunciou, já mais calma:

– Eu não quero este dinheiro.

– Já o deixaste muito claro – arqueou um sobrolho com aquela expressão cínica que tanto a irritava. – Sabes uma coisa? A tua família está fascinada com o espectáculo que estás a dar.

Tomando consciência da situação, recuperou rapidamente o controlo e virou-se para o executor testamentário.

– Por favor, acabe de ler o testamento, senhor Fitzhugh.

O executor testamentário demorou algum tempo a limpar os óculos com um grande lenço branco. Previra, quando Jolley redigira o testamento, que a sua família manifestaria uma reacção semelhante. Discutira com o seu cliente, tentara chamá-lo à razão, convencê-lo, indicar-lhe o absurdo das suas condições... Mas, por fim, fora obrigado a dar-se por vencido.

– Deixo-lhes tudo isto – continuou, – o dinheiro, as acções, os títulos e os lucros dos meus negócios, que, por si só, já constituem um bom motivo de preocupação. E também a minha casa, o mais importante para mim, com todas as lembranças a ela associadas. Tudo isto irá para as mãos de Pandora e Michael porque só eles me compreenderam e amaram. Deixo-lhes tudo isto porque não existem outras pessoas no mundo a quem possa doar algo que tanto prezei. O que antes era meu, agora é de Pandora e de Michael porque sei que eles manterão viva a minha lembrança. Só lhes peço uma coisa em troca.

– Agora é que vem a parte boa – murmurou Michael.

– A partir de uma semana da leitura deste documento, Pandora e Michael mudar-se-ão para a minha residência de Catskills, conhecida como Folley de Jolley. Viverão juntos durante um período de seis meses e nenhum dos dois poderá passar mais de duas noites seguidas sob outro tecto. No final deste período, a propriedade passará na íntegra para as suas mãos, em partes iguais. Se algum deles quebrar esta condição, ou os seus termos durante o prazo fixado, o meu património será cedido por inteiro aos meus herdeiros e ao Instituto de Estudo de Plantas Carnívoras, também em partes iguais. Têm a minha bênção, crianças. Não decepcionem um defunto, por favor.

Seguiu-se um longo e profundo silêncio de estupefacção. Aproveitando-se da situação, Fitzhugh começou a arrumar os seus papéis.

– O raio do velho... – murmurou Michael.

Pandora teria ficado ofendida ao ouvi-lo se não tivesse pensado exactamente o mesmo. Uma vez que a temperatura na sala parecia ter subido vários graus, Michael pegou-lhe no braço e tirou-a dali. Só parou quando chegou a uma das pequenas e acolhedoras salas da mansão. Acabava de fechar a porta quando ouviram o primeiro rebentar de vozes e gritos vindos da biblioteca. Tinham-se livrado por pouco.

Pandora assoou mais uma vez o nariz e sentou-se no braço de uma poltrona. Estava exausta.

– E então? O que vamos fazer agora?

Michael ia puxar de um cigarro. Até que se lembrou que deixara de fumar.

– Tomar algumas decisões.

Pandora lançou-lhe um olhar longo e penetrante. Michael limitou-se a enfrentar o olhar, sentado diante dela.

– Eu estava a falar a sério. Eu não quero o dinheiro. Depois de deduzidos os impostos, ficarão cerca de cinquenta milhões de dólares para cada um. Cinquenta milhões! – repetiu, levantando os olhos para o céu. – É ridículo!

– Jolley era da mesma opinião.

– Claro! O meu tio só queria os milhões para brincar com eles na bolsa. Para ele, fazer ou perder dinheiro era apenas um jogo. Só que cada vez ganhava mais – incapaz de permanecer sentada, aproximou-se da janela. – Michael, ter tanto dinheiro iria sufocar-me.

– Bom, o dinheiro não pesa tanto como tu achas...

Com uma expressão desdenhosa, Pandora virou-se e sentou-se no parapeito.

– Pois então fica com ele todo.

Michael pegou num ovo de cristal azul, que estava numa mesa, e começou a brincar com ele, passando-o de uma mão para a outra. Era um objecto lindo, que deveria custar vários milhares de dólares.

– Não é o que Jolley queria.

Irritada, Pandora arrebatou-lhe bruscamente o ovo.

– Ele queria que nos casássemos e vivêssemos felizes para sempre. Eu gostava de lhe agradar... – voltou a atirar-lhe o ovo – ... mas não sou uma mártir. Além disso, por acaso não estás noivo de uma bailarina famosa?

– É curioso! Tendo em conta o quanto desprezas a televisão, nunca teria imaginado que te interessariam tanto os mexericos da sociedade.

– Eu adoro os mexericos! – replicou com um tom tão exagerado que Michael desatou a rir-se.

– Vamos fazer uma trégua, está bem? Eu não estou noivo de ninguém, mas o casamento não figura em nenhuma cláusula do testamento de Jolley, que eu saiba. A única coisa que temos de fazer é viver juntos durante seis meses sob o mesmo tecto.

Enquanto o observava, sentiu desilusão. Talvez nunca se tivessem dado bem, mas sempre o respeitara. Embora apenas tivesse sido devido ao afecto que professara pelo tio Jolley.

– Desejas os milhões até esse ponto?

Irritado, Michael deu dois passos na direcção dela, antes de conseguir controlar-se. Pandora nem se alterou.

– Pensa o que quiseres. Tu não queres o dinheiro, óptimo! Mas esquece isso por um minuto. Vais permitir que esta casa vá parar às mãos daqueles abutres? Jolley amava esta casa e tudo o que contém. E eu sempre pensei que tu também.

– E amo! – afirmou. Sabia que os outros a venderiam. Não havia uma única pessoa naquela biblioteca que não estivesse disposta a colocar a mansão no mercado e a fugir com o saque. Todas aquelas salas absurdamente sumptuosas, aquelas arcadas ridículas... De repente, percebeu tudo. – Até depois de morto, quer controlar as nossas vidas...

– Surpreendida? – Michael arqueou um sobrolho.

Rindo-se entredentes, Pandora desviou o olhar.

– Na verdade, não.

 

 

Passeava lentamente pela sala, enquanto o sol, entrando pelas vidraças multicolores, produzia reflexos nos seus cabelos avermelhados. Michael observava-a com uma expressão de admiração distante. No ecrã de cinema, ou na televisão, ficaria magnífica. Sempre pensara isso. A sua facilidade fotogénica, a sua postura, a sua... arrogância natural. A câmara realçaria ainda mais o seu corpo esbelto e o seu rosto de traços finos, para não falar da cor de fogo do seu cabelo.

Mas, naquele momento, não estava interessado em nada daquilo, senão apenas no que se passava dentro da cabeça dela. Não lhe importava o dinheiro, mas não ia ficar de braços cruzados a ver como tudo o que tanto significara para Jolley, o que tanto lhe custara a construir, passava para as mãos daqueles abutres. E se tivesse de pressionar Pandora, fá-lo-ia. Talvez até gostasse.

Milhões! Pandora ainda continuava escandalizada com a enormidade da quantia. Tinha a certeza de que tanto dinheiro só lhe traria problemas. Títulos, acções, juros, impostos, encargos. Preferia um estilo de vida muito mais simples.

Até àquele momento nunca precisara de se preocupar com dinheiro e queria continuar assim. Acima ou abaixo de um certo nível de ganhos, só existiam preocupações, chatices. Decididamente, aquele dinheiro, ou pelo menos uma parte dele, poderia ajudá-la muito no plano profissional. Com uma segurança económica daquelas, poderia usufruir da liberdade artística que sempre desejara e continuar com o seu estilo de vida habitual sem ter de passar por dificuldades. As suas obras mais originais eram bem recebidas pela crítica, mas o que ganhava com elas não lhe chegava para viver. E, fora de Manhattan, eram consideradas demasiado vanguardistas, extravagantes até. Houvera vezes em que se lamentara precisamente por ter de recorrer a desenhos mais convencionais para conseguir manter-se. Pelo contrário, com cinquenta ou sessenta mil dólares como ajuda, poderia...

Furiosa consigo própria, travou o curso daqueles pensamentos. Estava a pensar como Michael. E preferia morrer a pensar como ele. Ele delapidara e desperdiçara o seu talento à primeira oportunidade que lhe aparecera, tal como estava disposto a aproveitar as actuais circunstâncias em seu próprio proveito.

Pensou no seu tio. Como se de um jogo de xadrez se tratasse, tinha de examinar todas as suas opções, as possíveis jogadas. Nunca vivera com um homem. A sua independência era o que mais prezava no mundo. Não se tratava tanto de não querer partilhar as coisas. Era o espaço o que a incomodava dividir. E, se acedesse, aquela seria a primeira das concessões.

atelier

– E eu posso instalar aqui a minha secretária e começar a escrever com a mesma facilidade.

– Chamas escrever a redigir aqueles guiões absurdos?

– Tal como tu chamas arte àquelas quinquilharias – replicou, mostrando-se satisfeito por ela corar ligeiramente.

– Não reconhecerias uma obra de arte nem que ta espetassem à frente do nariz. As minhas jóias expressam verdadeira emoção. Puro sentimento.

– Pois! E a quanto se cota o desejo nestes dias?

– Oh! Eu pensei que já estivesses familiarizado com o preço. A maior parte das mulheres com que sais vem com etiqueta.

Michael não se incomodou em disfarçar o seu divertimento.

– Eu pensei que estávamos a falar das tuas jóias.

– A minha profissão é totalmente dignificante, já a tua...

– Dão-me licença?

Fitzhugh apareceu naquele instante à porta da biblioteca. Estava desesperado por se desfazer, de uma vez por todas, da família McVie e beber um copo calmamente.

– Devo concluir que ambos decidiram aceitar as cláusulas do testamento?

«Seis meses», pensou ela. Iria ser um longo, mas muito longo Inverno...

– Pode começar a contar os dias a partir deste fim-de-semana – declarou Michael. – Estamos de acordo, prima?

Pandora levantou o queixo.

– Estamos de acordo.