cover.jpg

Página de título

Créditos

 

Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2002 Theresa S. Brisbin. Todos os direitos reservados.

A ESPOSA DE DUMONT, N.º 257 - maio 2013

Título original: The Dumont Bride

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2008

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2969-5

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Dedicatoria

 

Este livro é dedicado a Walt e Rose, os verdadeiros sir Walter e lady Rosalie, pelos anos de amizade e apoio, e por mais coisas que agora não consigo recordar.

 

Reconhecimento

A ideia desta história surgiu-me ao ouvir a letra e a música My own prision, de Scott Stapp and Creed. O meu agradecimento pela sua inspiração.

Um

 

Castelo de Greystone

Lincolnshire, Inglaterra

Maio de 1194

 

Leonor Plantageneta, rainha de Inglaterra pela graça de Deus, viu como a sua jovem protegida ficava rígida de raiva e orgulho. Ela também sentia vontade de gritar de raiva e de dor pelo modo como desconfiava que aquela menina fora utilizada, mas não podia dar-se a esse luxo. Tinha de entrar em ação para salvar o reino e, possivelmente, a vida da jovem. Tendo em conta que tinham sido as ações do seu filho que tinham provocado o mal e já que esse mesmo filho prosseguiria com a sua busca até os seus desejos serem satisfeitos, só ela podia intervir e impedir os seus planos.

– Pedir-te-ei mais uma vez – disse a Emalie. – Diz-me o nome do homem que te desonrou.

– Não sei do que está a falar, Alteza – respondeu a jovem, sem olhar para ela.

– Não sou estúpida e espero que não me trates como tal! – respondeu Leonor, para tentar franquear a calma de Emalie e conseguir, assim, a verdade.

Mas, para além de um ligeiro tremor nas suas mãos entrelaçadas, a jovem não mudou de expressão, nem se mostrou disposta a responder.

Leonor aproximou-se dela para lhe fazer outra pergunta, mas, naquele momento, ouviu-se um alvoroço do outro lado da porta. As vozes e o ruído deram lugar à abertura da porta enquanto o guarda tentava manter o filho de Leonor afastado. Com um sinal da rainha, os soldados retrocederam no seu empenho e puseram-se ao lado da porta.

– Senhora... – disse João, assentindo com arrogância e fazendo uma reverência. – Hoje está com um aspeto magnífico.

João inclinou a cabeça e beijou-a friamente na face. Ela reprimiu um calafrio ao ouvir o tom sibilino da sua voz e ao observar o seu olhar. Em ocasiões como aquela, perguntava-se como pudera dar à luz semelhante víbora.

– Dei ordens para que ninguém me incomodasse, para poder discutir este assunto em privado – indicou, levantando-se. – E essa ordem incluía-te.

– Ah...! – exclamou João, apertando a mão de Emalie. – A sempre justa lady Emalie Montgomerie... – murmurou, beijando os nós dos dedos da jovem.

Deixou, intencionalmente, que Leonor visse como passava a ponta da língua pela mão de Emalie. A jovem, que não estava tão habituada como ela às maldades do seu filho, afastou bruscamente a mão e empalideceu. João sorriu e deixou a descoberto os seus grandes dentes.

– Com uma companhia tão encantadora, nem a guarda inteira teria impedido que entrasse nesta sala, mãe.

Leonor perguntou-se se a jovem teria consciência de que estava a aproximar-se lentamente dela, como se procurasse a sua proteção perante João. O jovem apercebeu-se perfeitamente, porque avançou para Emalie.

– Já chega, João! Para de assustar a menina e explica-me a razão pela qual interrompeste a nossa conversa!

Leonor avançou para uma das cadeiras altas que havia ao lado da janela e assinalou a outra com um gesto para que a jovem se sentasse.

– Estou aqui em nome do meu amigo William DeSeverin – começou a explicar João.

Ele também se aproximou da janela e olhou através dela, adotando a sua típica expressão de indiferença. Nada de bom poderia sair daquela situação. Nada!

– E o que tem esse homem a ver com lady Emalie?

– Arrepende-se do seu comportamento excessivo para contigo, queridíssima Emalie – garantiu, olhando primeiro para Leonor, antes de concentrar a sua atenção no seu verdadeiro objetivo. – O seu desejo é seguir em frente e salvar-te da desgraça.

– Alteza, não preciso que me salvem da desonra – respondeu Emalie, em voz baixa.

– Tolices, senhora! Todo o castelo e toda a vila sabem do que estou a falar.

Leonor não podia permitir que aquilo seguisse em frente. Tinha de assumir o controlo da situação antes que tudo se perdesse.

– Eu também não encontro motivos para que sir William salve Emalie – replicou, com frieza.

– Mãe, como lhe dizia na mensagem que lhe trouxe aqui, William confessou ter conhecido de uma forma íntima a condessa e disse que está disposto a casar-se com ela para evitar a desonra.

– E eu repito-te que não encontro motivos para que esse casamento se celebre.

– Os seus criados sabem que...

– Os criados desta dama juraram pela sua alma imortal que é inocente.

– Estão a mentir, já que eu...

– Tu, João? Tu tens alguma coisa a ver com a tentativa de desonrar a condessa de Harbridge? Tanta mesquinharia surpreende-me até em ti, sobretudo ao considerar a estima e o carinho que o teu irmão tinha pelo seu pai antes de falecer.

Leonor olhou para o filho nos olhos e leu a verdade neles. Emalie fora o seu objetivo, William fora a sua marioneta, e a desgraça da jovem, a ferramenta para a submeter ao seu poder.

Leonor virou-se para a jovem. A sua respiração agitada fê-la ver que estava prestes a desmaiar. A rainha sentiu uma pontada no estômago ao compreender as intenções de João.

– Falei com todas as pessoas cujos nomes me facilitou e nenhuma delas disse nada que não fossem palavras elogiosas da sua senhora. Nem os seus criados, nem os trabalhadores da vila. Portanto, não tenho outro remédio senão negar a William o consentimento para se casar com ela.

– Senhora, acho que deveria reconsiderar a vossa posição – indicou João, com uma voz suave e, ao mesmo tempo, ameaçadora.

– Ricardo é outra vez rei e não permitirá este truque tão sujo para assumirem o controlo. Acho que tu e os teus devem desviar os vossos olhares sujos para outro lado, porque a nossa conversa já acabou.

Leonor fez um movimento brusco com a mão para chamar o guarda.

– Escoltem esta dama aos seus aposentos e não permitam que ninguém vos impeça.

Leonor fez um gesto à jovem para que seguisse os guardas. Emalie levantou-se e fez uma pequena reverência antes de sair.

João viu-a partir com lascívia.

Aquilo ainda não acabara e assim quis fazer saber à sua mãe.

– Não estou nada satisfeito com a sua intervenção, senhora. Nada satisfeito!

– Satisfeito ou não, estou aqui por tua causa. E ficarei até ter a certeza de que Emalie está a salvo.

– Ou até que algo exija a sua atenção noutro lado.

João aproximou-se do seu lado e beijou-a outra vez na face. Mas, em vez de se afastar depois, sussurrou-lhe um aviso ao ouvido:

– Preocupa-te com Ricardo e deixa Inglaterra comigo, velha!

Leonor ficou muito quieta enquanto aquela víbora saía e os guardas fechavam a porta atrás dele. E, então, pela primeira vez em muito tempo, Leonor, a rainha de Inglaterra, permitiu que os seus setenta e dois anos lhe pesassem momentaneamente sobre os ombros. E aquele peso imenso deixou-a sem fôlego enquanto pensava num modo de resolver aquele problema.

Dois

 

Província de Anjou, França

Junho de 1194

 

Christian Dumont rangeu os dentes e tentou não pensar no ruído que faziam os ratos que havia no chão da sua cela. Durante os seus meses de cativeiro, aprendera a ignorar os sons dos roedores, os gritos de dor dos prisioneiros e, inclusive, os protestos do seu estômago vazio. Mas o que não conseguia ignorar era a tosse constante do seu irmão Geoffrey, que o acordava sempre.

Aproximou-se de Geoffrey e ajudou-o a endireitar-se enquanto o corpo do rapaz se convulsionava pela tosse, um corpo que, a cada dia que passava, se tornava mais pálido e frágil. Enquanto lhe dava uma palmada nas costas parecia que a tosse acalmava. A pouco e pouco, o rapaz começou a respirar com menos dificuldade.

– Já passou, Christian. Já estou bem – sussurrou o seu irmão, afastando-o de si.

Christian aproximou-se do balde que continha a pouca água que restava e encheu uma chávena gasta até cima. Sabia que não lhes duraria muito e, ao levantar a chávena, reconheceu a humilhação do seu irmão no ligeiro tremor dos ombros quando aceitou a chávena.

– Há mais? – perguntou Geoffrey, sem o olhar nos olhos.

– Sim. Teremos para, pelo menos, mais um dia ou dois.

Christian sabia que o rapaz não tinha força suficiente para se aproximar e confirmar ele mesmo o estado do balde, portanto sentiu-se bem com a sua mentira. Para que haveria de preocupar o seu irmão? Isso só serviria para o debilitar ainda mais. Christian aconchegou-o com a manta e ajudou-o a voltar a deitar-se.

Tinham ficado sem moedas na noite anterior e sabia que não conseguiriam mais ajuda dos guardas. Só ajudavam quando aparecia uma moeda de ouro na palma da sua mão e as economias dos Dumont tinham acabado. Durante o tempo que tinham passado naquele lugar afastado da mão de Deus, Christian vendera todas as suas posses, exceto o anel de selo do pai, para conseguir comida e água em boas quantidades para o irmão.

Afastou-se de Geoffrey e acariciou o anel, que agora lhe pendia de um fio ao pescoço. Aquilo era tudo o que lhe restava do pai... A sua herança... A sua fortuna. Christian riu-se amargamente ao pensar no quão baixo caíra a antiga e poderosa família Dumont. E tudo por causa dos inúteis e arriscados esforços do seu pai para apoiar o homem errado.

Ricardo Coração de Leão olhara, felizmente, para o outro lado quando herdara o trono do pai, ignorando a maioria dos nobres que tinha apoiado a luta de Henrique contra os seus filhos e a sua esposa. Um rei podia ser magnânimo na vitória. Mas agora que fora libertado da sua própria prisão e tinha de enfrentar as maquinações do irmão, tomara outra atitude. João Sem Terra assumira, durante anos, um controlo férreo sobre os domínios dos Plantagenetas em Inglaterra e houvera muitos mortos no continente. Ambas as coisas tinham mudado a fisionomia do seu reino e Ricardo estava decidido a limpar a casa. E a Casa de Dumont era um dos seus principais objetivos.

Christian passou a mão pelo rosto e suspirou com cuidado para que o seu irmão não visse os sinais de desespero. Não lhe restavam ideias. Não lhes restava dinheiro. E em breve, se nada o remediasse, também ficariam sem tempo.

 

 

Na manhã seguinte, acordou com o grito de um guarda. Apoiando-se sobre o seu irmão, ouviu o subir e descer do peito de Geoffrey, enquanto o rapaz dormia. Christian levantou-se e espreguiçou-se, tentando esticar os músculos que há tanto tempo não exercitava.

Ao ouvir o seu nome, virou-se e viu o soldado avançar pelo corredor ladeado de celas.

– Vamos, Dumont! Tem de vir connosco.

O soldado vinha acompanhado de outros dois, enquanto um quarto esperava à porta da masmorra.

Christian sorriu ao pensar que precisavam de quatro pessoas para o levar. Talvez em tempos melhores, sim, mas, naquele momento, não. A falta de alimento, de descanso e de exercício tinham sido implacáveis.

Olhou para Geoffrey e perguntou-se se ele também teria de ir.

– Não, o cãozinho não – disse o guarda, antes que lhe perguntasse alguma coisa. – Por enquanto, só chamaram o filho mais velho do traidor.

Christian fez uma careta ao ouvir aquele insulto que lhe recordava a sua nova posição. O seu pai desonrara todos os que usavam o apelido Dumont com os seus atos traidores. Um dos soldados agarrou-o pelo braço para o levar, mas ele soltou-se. Então, dois homens seguraram-no e atiraram-no com mais força para o corredor.

O grupo avançou rapidamente pelo porão húmido do castelo antes de subir dois andares para chegar ao piso principal. Enquanto passavam, os prisioneiros gritavam-lhes insultos. Christian teve de fazer um esforço para lhes acompanhar o passo. Não queria que o levassem de rastos para enfrentar o seu destino. Enfrentaria o que o esperava, fosse o que fosse, como um homem. Como o guerreiro que era. Defenderia a honra maltratada da sua família, apesar dos erros do seu pai.

A luz brilhante do sol, que se filtrava através das janelas altas de vidro, era uma tortura para os seus olhos. A escuridão da masmorra deixara-o incapacitado para enfrentar o poder da luz do dia. Tentou levantar a mão para proteger os olhos, mas os guardas não lhe permitiram que soltasse os braços. O som das suas botas sobre o chão de pedra despertava o eco à frente e atrás deles.

Pararam diante do palanque que havia à frente de uma sala e atiraram Christian para o chão. Incapaz de manter o equilíbrio, caiu no chão de pedra, nauseado e sem fôlego. Um murmúrio de vozes invadiu a sala. Embora ainda não conseguisse ver com clareza, Christian olhou para os dois lados e tentou localizar quem estava a falar. Afastou o cabelo dos olhos e esfregou-os para tentar aclará-los, enquanto se levantava com muita dificuldade.

Uma mão forte pousou sobre o seu ombro, obrigando-o a cair de joelhos. Christian levantou a vista para o palanque e entendeu a razão daquela posição. Estava na presença do rei. Baixou os olhos, engoliu em seco e preparou-se para enfrentar o seu julgamento. Como filho mais velho que era, aceitaria a morte sem perder o controlo. Agora, a sua única preocupação era como evitar o mesmo destino a Geoffrey.

– Meu Deus, o conde de Langier aparece finalmente!

O rei começou a rir-se da sua própria acuidade e outros secundaram-no. Christian olhou para os que rodeavam Ricardo e não reconheceu ninguém. Ninguém falaria a seu favor.

– Levanta-te, Dumont! Quero ver a tua cara quando falar contigo.

Christian fez um esforço para se levantar e puxou a manga feita em farrapos da sua camisa. Ao ver-se na presença do rei, que estava magnificamente vestido, pela primeira vez na sua vida sentiu-se envergonhado do seu aspeto. Antes, nunca se importara com tecidos esplendorosos, nem com decoração, mas os seus meses de cativeiro tinham-no feito pensar em coisas às quais nunca prestara nenhuma atenção. Inclusive, chegara a sonhar com roupas lavadas e justas, comida, água, ar puro e a luz do sol.

Voltou a olhar para o rei e apercebeu-se de que Ricardo e outros estavam a comer numa mesa alta. O cheiro da vitela bem cozinhada, do pão quente e dos queijos rodearam-no e sentiu água na boca. Sem pensar no que fazia, humedeceu os lábios secos com a língua ulcerada e voltou a sentir aqueles cheiros.

– Vá, Dumont, junta-te a nós à mesa! Tenho a certeza de que a comida que servem lá em baixo não está à altura das expectativas do conde de Langier.

Embora soubesse que Ricardo estava a gozar com ele, a imagem de comida quente, acabada de fazer e sem insetos era demasiado tentadora. Mexeu os pés para onde o rei lhe assinalava e deixou-se cair num banco. Embora se tivesse sentado na ponta da mesa, a maioria dos que estavam à sua volta afastou-se, tapando o nariz e fazendo uma careta perante o seu aspeto. Só a presença do rei evitou que partissem.

Um criado encheu-lhe o copo de vinho, pôs-lhe um prato de comida à frente e afastou-se rapidamente, outra prova da sua condição malcheirosa. Christian não se importava. A comida que tinha diante de si era a primeira que podia ser digna de semelhante nome em mais de dois meses e não se deixaria influenciar pela sensibilidade olfativa dos outros. Surpreendido diante do súbito aparecimento de um rapaz ao seu lado, ficou sentado, mudo de espanto, até que o rapaz deixou perto dele uma bacia com água.

Na masmorra não era necessário ter boas maneiras à mesa e Christian esquecera-se até das mais elementares boas maneiras. Depois de hesitar durante um instante, mergulhou as mãos na água aromática e agarrou no pano branco que o pajem lhe estendia. Ainda mais humilhado pela porcaria que deixou na bacia e no pano, Christian virou-se novamente para a comida que tinha diante de si. Antes de a provar, olhou outra vez para os farrapos, para tentar encontrar um modo de levar alguma comida para Geoffrey na roupa. Um bom bocado de pão com queijo serviria, mais que de sobra, para a sua atual situação, sobretudo se ele comesse agora. Assim, o seu irmão não teria de partilhar com ele.

As mãos tremeram-lhe quando as esticou para alcançar o pão. Arrancou um pedaço e levou-o à boca. Fechou os olhos e saboreou a suavidade do miolo. Passara muito tempo, demasiado, desde que comera alguma coisa daquela qualidade.

– Só tinha visto semelhante reverência perante um pedaço de pão na consagração da Eucaristia. O que te parece, Ely?

As brincadeiras de Ricardo continuavam do lugar que ocupava no meio da mesa.

O bispo de Ely, o chanceler de batalha de Ricardo, murmurou como resposta algo que Christian não conseguiu nem quis ouvir, e os outros riram-se. Recusando-se a olhar para as suas caras alegres, engoliu o pão e agarrou no seu copo. O miolo ficara-lhe preso na garganta e não descia. Teve de ajudar com um pouco de vinho.

A dor de garganta não se devia só à fome, mas à convicção de que, há apenas alguns meses, ele teria participado alegremente daquele jogo. E não teria tido o mínimo remorso de humilhar alguém a favor do rei. Aprendera muitas coisas durante a sua prisão e nenhuma daquelas lições lhe fora fácil.

As mãos tremeram-lhe um pouco menos quando agarrou noutro bocado de pão. Desta vez, mastigou-o mais devagar, saboreando-o.

Alguns minutos mais tarde, Ricardo deu por finalizada a refeição e, com um gesto da mão, despediu-se de todos os comensais. Christian entrou em pânico, porque não tivera oportunidade de reservar nada para Geoffrey. Então, procurou um bolso na sua camisa ou algum outro esconderijo onde pudesse guardar um bocado de pão e outro de queijo.

– Bernard, já que avisámos o conde tão tarde para comer, certifica-te de que lhe levam o seu prato à cela. E que lho levam imediatamente!

O homem que estava ao lado de Ricardo assentiu e retirou-lhe o prato com o pão e o queijo incluído.

Christian sentiu vontade de se colocar de joelhos e beijar a mão do rei para lhe agradecer a sua generosidade, se com isso conseguisse que levassem aquela comida a Geoffrey. O criado tapou o prato com um guardanapo de linho e saiu da sala. Agora, Christian descobriria a razão daquela reunião, sabendo que a generosidade não seria a principal.

Ricardo levantou-se e aproximou-se da ponta da mesa onde ele permanecia. Christian fez menção de se levantar, mas o rei indicou-lhe com um gesto que continuasse sentado.

– O teu pai está morto e as tuas terras e a tua fortuna estão sob o meu controlo – disse Ricardo, sem mais preâmbulos, sentando-se perto dele. – Só restam tu e o teu irmão. Não precisava de fazer grande coisa para ver o desaparecimento definitivo da família Dumont.

Christian assentiu perante as palavras do rei. Sabia muito bem quão precária era a sua situação e a de Geoffrey. Ricardo só estava a recordar-lhe quem tinha o poder.

– Mas preciso de um serviço que tu podes fazer-me.

– Um serviço, senhor?

Christian fez o possível para não se agarrar à mais pequena das esperanças ao ouvir as palavras do rei.

– Sim, a minha mãe pediu-me para te mandar ir ter com ela a Inglaterra, para que tenhas a oportunidade de te libertares do peso dos pecados do teu pai.

– Inglaterra? Não há nenhuma possibilidade de lhe demonstrar a minha lealdade aqui ou em Château d’Azure?

Christian desejava regressar às terras da sua família, ao lugar onde nascera.

– Não te preocupes. As tuas terras foram bem tratadas durante o teu cativeiro, não foram como as de outros.

A referência à rapina de João Sem Terra nas propriedades inglesas de Ricardo não era nenhum segredo para ele.

– E o que devo fazer em Inglaterra?

Christian queria saber a verdade o quanto antes, descobrir porque é que Ricardo parecia disposto a deixá-lo viver.

– A minha mãe só me pediu que te mandasse para Inglaterra e, seguindo o seu hábito, recusou-se a dar-me mais explicações – indicou Ricardo. – Aprendi, já há muito tempo, que a minha mãe não se explica a nenhum homem, a não ser que ela queira. O meu pai queixava-se constantemente deste defeito dela.

Ricardo levantou-se, contornou o palanque e atravessou uma porta. Fez um sinal a alguém que estava lá dentro e um sacerdote carregado com uma pilha de documentos seguiu-o até à mesa. O clérigo ordenou os papéis em vários montes. Quando acabou de os organizar, sentou-se de braços cruzados e esperou que Ricardo falasse. Christian também esperou.

– Aqui estão as escrituras das tuas propriedades em Poitou e a conta da tua fortuna. E isto – disse, desdobrando um pergaminho diante de Christian, – é o decreto real que te devolve o título de conde de Langier, a ti e aos teus herdeiros. Está tudo aqui, pronto para que eu assine, se te mostrares de acordo a levar a cabo qualquer tarefa que a minha mãe te peça quando chegares a Inglaterra.

Christian não tinha palavras. Desejava recuperar o prestígio do seu apelido, a sua fortuna, as suas propriedades e a sua honra. Mas uma pequena parte dele impedia-o.

– E que tipo de tarefa devo levar a cabo?

Ricardo bateu com força na mesa e os papéis saíram a voar em todas as direções. O clérigo limitou-se a pestanejar, como se estivesse habituado àqueles arrebatamentos reais.

– Ofereço-te tudo o que tinhas e atreves-te a questionar as minhas ordens? Poderia atirar-te novamente para a tua masmorra e ninguém voltaria a ouvir o apelido Dumont. É isso que queres? Que o teu irmão e tu morram como os filhos de um traidor?

Christian engoliu em seco para tentar controlar o terror que as palavras do rei lhe produziam, que lhe recordavam claramente o que o esperava se se recusasse a realizar aquela tarefa misteriosa para o rei. Levantou-se e inclinou a cabeça diante de Ricardo.

– Não, senhor.

– Então, dá-me a tua palavra e porei tudo isto em marcha: recuperarás as tuas propriedades, desaparecerá qualquer sombra de traição do teu nome e o teu irmão sairá da prisão.

Christian hesitou apenas um instante antes de dar ao rei o que lhe pedia. O que estava a acontecer só acontecera nos seus sonhos. Rezara sem descanso para encontrar uma saída para a espantosa situação em que Geoffrey e ele se encontravam, e isso era exatamente o que Ricardo estava a oferecer-lhe. Não devia perder a oportunidade de recuperar a sua honra perdida.

– Eu sou o seu homem, senhor.

Christian ajoelhou-se diante do rei e ofereceu-lhe as mãos em sinal de respeito. Ricardo tomou-as e, depois, pôs-lhe uma mão na cabeça.

– Então, volta a ser o conde de Langier e meu vassalo. As propriedades e a fortuna da família Dumont voltam a estar em teu poder, mas ficarão ao cuidado do chanceler da Coroa até teres completado a tua tarefa.

Christian levantou a cabeça para olhar para Ricardo. Eram dele, mas não eram dele? O rei ainda não acabara.

– Tens uma semana antes de partires para Inglaterra. Utiliza-a bem. Podes levar o teu irmão para Château d’Azure e pôr-te à minha disposição na próxima terça-feira.

Christian levantou-se e recuou. Estava salvo! O seu irmão viveria! E a sua honra ficaria limpa. Tudo em troca de fazer um serviço para a rainha Leonor.

Um serviço para a rainha. Novamente, uma sombra passou pela sua cabeça. E se o preço fosse demasiado alto? E se não conseguisse cumprir aquela missão tão misteriosa? Não, não falharia. Não podia permitir-se falhar. O futuro e o passado do título de Langier, e sobretudo o seu irmão, dependiam dele.

Ricardo inclinou-se sobre os documentos e estampou a sua assinatura na maioria das folhas. Christian acrescentou a sua, tal como o clérigo lhe disse. Depois de dar mais instruções ao sacerdote e despedir-se de Christian com um assentimento de cabeça, o rei desceu os degraus e, justamente quando chegou à porta, virou-se.

– Langier – disse Ricardo, utilizando agora o seu recém-recuperado título para se dirigir a ele. – Quando descobrires a relação que o meu irmão tem com isto tudo, diz-me. Sinto o seu fedor mesmo com o canal pelo meio e apesar de ele garantir que é inocente.

Christian assentiu para demonstrar que concordava com aquele termo adicional ao seu acordo.

– Diz-me a mim e a mais ninguém.

O rei partiu sem ouvir a sua resposta, deixando-o a sós com a sua confusão atónita.