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© Editora Gato-Bravo, 2019


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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty

revisão e adaptação Gabriel Benamor

capa Julio Silveira, Ímã Editorial
projecto gráfico 54 design, Ímã Editorial

imagem da capa Shutterstock



Título

Sacrifício e outros contos

Autor

Francisco de Morais Mendes


isbn 978-989-8938-27-5
e-isbn 978-989-8938-28-2


1
a edição: setembro, 2019

Depósito legal: 461351/19



gato·bravo
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Índice

Sacrifício

Jogo de cartas

Quinta-feira, 17, por volta das 18 horas, com chuva

A duração

Gravitação

O ato de ler

Teca

Urgência

Autópsia

Sugestões para começo, meio e fim

Sacrifício

1

Já não se abaixa como antes, o tempo recolheu a destreza. Os joelhos estão sacrificados, os tornozelos, desgastados. Dores no quadril tornam seus movimentos limitados. Mas ainda assim, ainda hoje, este homem de sobrenome Marcial, com 78 anos, barba e cabelos brancos e fartos, mantém um hábito. Hábito? Sempre se embaraçou ao tentar nomear tal gesto: achar dinheiro na rua.

Não se lembra de quando a criança, sorrindo, mostrou para a mãe uma moeda encontrada entre as pedras do calçamento. Nunca esqueceu a resposta, nem o brilho dos olhos da mãe, embora lhe escape o tom da voz:

– Sorte a sua, meu filho!

Tem sido essa a sorte de Marcial – e o motivo de ele jamais ter tido ocupações ditas normais. Nunca foi bancário, feirante, escriturário, servidor público, balconista, mecânico, comerciário, professor ou técnico em qualquer coisa.

E quando teve – e manteve, por grande parte da vida – um negócio, era apenas uma forma de dissimular a natureza de suas posses e de lidar com o Fisco e a Administração pública.

2

O destino daquelas primeiras moedas foi um cofre de brinquedo. Marcial lembra-se de um cofrinho verde, no formato do prédio de um banco, então um dos edifícios mais altos da cidade. Depois, vieram outros, no formato de foguete, porquinho, casinha, apenas sombras na memória, sem a solidez do cofrinho verde.

De admiradora da sorte do filho, a mãe passou a repreendê-lo quando ele comemorava o encontro de uma moeda. Incutiu no menino a desconfiança sobre a facilidade de achar dinheiro. Se, até então, ele partilhava com os pais e os irmãos a alegria de achar moedas e notas, repartindo também chocolates e balas, logo descobriu sua habilidade como algo muito malvisto.

Além de repreendê-lo, a mãe levantou uma suspeita: não estava subtraindo dinheiro de alguém? Ele começava a aprender as operações da aritmética na escola. A mãe, percebeu logo, tinha razão. O dinheiro não nasce como as plantas, ele já sabia. Se encontrava uma moeda, alguém a havia perdido. As notas e moedas do seu cofrinho eram dos outros, não dele.

Com esta constatação, o pequeno Marcial deu por encerrada uma etapa de sua vida: comentar com os pais, os irmãos e conhecidos sobre o dinheiro encontrado. Nascia ali uma pessoa silenciosa, ensimesmada. Seu refúgio eram as revistas em quadrinhos. Boa parte do dinheiro era gasto com elas.

3

Os cofrinhos há muito transbordaram, como a infância transbordava. Aos dez anos, o menino improvisava esconderijos dentro de casa e no quintal.

Certo dia alguém – o irmão, a irmã? – encontrou um maço de notas atrás do guarda-roupa. Tal encontro rendeu a Marcial uma surra tão memorável quanto injusta. Daí em diante adotou procedimentos adequados para o dinheiro desaparecer do alcance das pessoas.

As notas eram acondicionadas em sacolas plásticas. As moedas, em velhas latas de cera. Enterrava tudo num lote vago próximo de sua casa, onde costumava brincar com os amigos. Abandonaram as brincadeiras quando o terreno foi transformado em depósito de lixo.

Usava a área como esconderijo do dinheiro. Mas sabia que não devia deixar num só lugar sua pequena fortuna; tratou de distribuí-la em outros locais. Assinalava-os nas últimas páginas de um dos cadernos de escola, em códigos numéricos. Se vistos por outras pessoas, pareceriam inofensivas operações aritméticas. Também desenhava mapas, como inocentes exercícios de geografia.

4

Numa tarde de calor intenso, Marcial andava pela cidade, recolhendo envergonhado uma moeda aqui, uma nota ali. A vergonha vinha das reprimendas da mãe, mas era inevitável: se a atividade não era bem vista, notas e moedas o eram; via-as de longe. Se invisíveis para os outros, também ele, quando se abaixava para apanhá-las, tornava-se invisível – essa a sua impressão. Nunca aconteceu de ser molestado por alguém, nunca foram lhe perguntar o que ele havia encontrado.

Mas não era invisível para si mesmo e se viu refletido na vidraça da biblioteca pública. Por algum efeito da luz, sua imagem ali se tornava maior que a do garoto refletido no espelho. Tinha treze anos. Estava cansado, fazia um calor incômodo, e imaginou encontrar lá dentro um ar mais fresco. Pela segunda vez entrava naquele prédio; a primeira havia sido numa excursão da escola.

Folheou ao acaso os livros sobre a mesa, leu alguns trechos e logo bocejou. Aproximou-se dele uma moça e perguntou se procurava algum livro em especial. Envergonhado, intimidado, ele resmungou um “não”, e emendou com “não sei”.

Ela pediu para ele segui-la e, enquanto o conduzia pelo corredor, explicou-lhe, os livros dali podiam ser chatos para ele, pois estava na área para adultos. Levou-o às estantes de literatura para jovens.

– Escolha um e comece a ler. Se não gostar, deixe-o sobre esta mesa e pegue outro. Fique à vontade.

Esperou a moça afastar-se para se sentir mesmo à vontade e começar a folhear os livros. Tentou um, depois outro e mais outro. O terceiro começou a ler interessado – chamava-se A ilha do tesouro. O menino ensimesmado, silencioso, descobria um novo refúgio para a estranheza do mundo: o texto corrido, sem ilustrações.

Começou a retirar livros por empréstimo na biblioteca. Sentia-se dono de tudo aquilo, como se o lugar fosse uma parte de sua casa.

5

Um dia foi ao lote para guardar mais uma sacola e tomou um susto. Tratores haviam aplainado o terreno. A terra e o lixo foram jogados em caminhões. Estavam cercando o lote.

Conversou com um tratorista e com o motorista de um caminhão. Falaram de assuntos variados, mencionou dinheiro, tesouros enterrados, e nada. Nenhum deles dava o menor sinal de ter encontrado algo de valor naquele terreno. Perguntou para onde levavam a terra. O motorista falou do local, muito longe, uma área de brejo que estava sendo aterrada na periferia da cidade.

Foi até lá com uma mochila, percorreu o local e logo – era mesmo seu destino – recuperou parte do seu tesouro. Nem procurou por todas as sacolas, pois rapidamente teria em mãos o dinheiro ali perdido.

6

Nas caminhadas pela cidade, Marcial conhecia algumas livrarias, mas a timidez o impedia de entrar. Sentia algo como vergonha, limitava-se a olhar as vitrines. Com os sebos era diferente, algo neles o atraía. Particularmente gostava de um situado na região do mercado central, onde, quando entrou pela primeira vez, foi acolhido pelo dono, o senhor José Rubem.

Depois de tornar-se um frequentador do sebo, conseguia localizar os livros quase tão rapidamente quanto José Rubem. E passou a orientar os clientes. Tornaram-se amigos, ele e José Rubem.

Logo que se conheceram melhor, José Rubem sentenciou:

– Você é um homem de sorte.

Assustou-se, sem entender como o outro sabia disso.

– Homem de sorte é o homem que lê – completou o amigo.

Um dia, José Rubem disse a Marcial:

– Se tivesse como pagar a você, gostaria de contratá-lo.

Marcial entrava nos dezassete anos. Breve terminaria o curso secundário e, como acontecera com os irmãos mais velhos, seria incentivado pelos pais a procurar um emprego.

Àquela altura o rapaz já sabia: não precisaria de um emprego. Tornava-se um rapaz rico, e sua única obrigação ou tarefa era andar pelas ruas.

7

Num dado momento, o adolescente com o rosto cheio de espinhas e o cérebro cheio de dúvida rebelou-se contra a sorte, ou melhor, o destino. Resolveu perder dinheiro. Deixava-o cair das mãos fingindo distração, sem sucesso. Alguém vinha esbaforido atrás dele, pronto a devolver-lhe o dinheiro. Alguns aceitaram parte do achado como recompensa. Outros recusavam, ofendidos.

Resolveu perder o dinheiro em recantos ermos. Adiantou? Mal deixava o lugar, deparava-se com uma, duas, três notas. Olhava em volta, na esperança de encontrar o dono do dinheiro. Isso nunca acontecia. Desistiu.

8

Havia passado por todas as fases imagináveis em relação ao dinheiro, até conformar-se com o destino. Decidiu, então, fazer a riqueza aparecer, justificar-se como rico perante os parentes. Passou a apostar em loterias. Chegava a jogar grandes quantias, porque assim justificaria o súbito enriquecimento.

Nada obteve.

Não tinha sorte alguma no jogo, não acertava nem os prêmios mais baratos e fáceis; os números por ele escolhidos sempre estavam longe dos sorteados. Deixou de apostar por vergonha do fracasso.

Outro insucesso provinha do relacionamento com as garotas. Seus namoros duravam pouco, fracassavam sem ele compreender o motivo. Acabou desistindo de procurar uma companhia permanente. Algumas vezes mantinha contato com prostitutas.

9

Terminado o curso secundário, chegou a sua vez de procurar trabalho. Tinha consciência de não precisar aturar chefes ou colegas querendo mandar nele, como reclamavam os irmãos e conhecidos. Inventou o trabalho que tiraria dele a suspeita de vagabundagem.

Propôs ao José Rubem passar as tardes na loja, ajudando-o no atendimento aos fregueses e na arrumação das prateleiras. A condição era a de receber o pagamento não em dinheiro ou livros, mas em leitura. Poderia tomar emprestado qualquer livro, poderia ler no trabalho sem o patrão incomodá-lo ou levar o livro para casa e devolvê-lo quando quisesse.

A alegria de José Rubem traduziu-se em seis palavras e uma dúvida:

– Para mim é um ótimo negócio! Mas e você, Marcial, vai viver de quê?

– Estou entrando na faculdade. Não preciso de dinheiro agora, preciso de livros. Se concordar, o senhor vai me ajudar muito.

Contava para o senhor José uma pequena mentira. Perante a família, estava resolvido seu problema de emprego. No meio da tarde saía do trabalho para tomar um café. Voltava com trocados no bolso. A velha e boa sorte não o largava.

10

Não o largava também a velha angústia. Um atributo o singularizava, era certo. Ora ele tratava sua condição como “capacidade”, “habilidade”, ora como “dom”, “sorte”, no sentido de “destino inevitável”, mas nenhuma expressão o agradava.

Certo dia, no sebo, resolveu praticar num dicionário de sinônimos uma brincadeira. Consistia em abrir um livro ao acaso para fazer uma adivinhação. Encontrou um encadeamento de palavras que quase o derrubou da cadeira. Eram os sinônimos da palavra “tendência”: inclinação, pendor, queda.

Estas palavras, refletiu, empurram para baixo. E era verdade, se aplicadas a ele, porque sempre se abaixava para cumprir sua sina. Se aquelas palavras assinalavam um destino, era o destino de um homem de sorte.

11

José Rubem faleceu quando Marcial completou vinte anos de idade. A viúva e os filhos assumiram o negócio, e ele, percebendo que não poderia mais ficar por ali, afastou-se, decidido a ter o próprio negócio.

Iria resolver de maneira definitiva seu grande problema. Em outro ponto da cidade, montou um sebo. Contornou a burocracia das fichas de cadastro e da exigência de fiador oferecendo alguns meses de aluguel adiantado ao proprietário da loja. Alguns anos depois, ele a compraria.

12

Aprendera com José Rubem como funcionava um sebo. Procurar bibliotecas à venda, de escritores, intelectuais, juristas e professores. Pesquisava no obituário dos jornais. Ia, com outros livreiros, disputar o espólio de livros, menos de juristas. Tinha certa ojeriza a livros de Direito, nunca soube o motivo. Marcial não era bem-sucedido nessas empreitadas, os concorrentes sempre conseguiam os melhores livros, mas obtinha alguma coisa, de modo a manter uma fachada do negócio.

Diferentemente do sebo de José Rubem, cheio de clientes, a sua loja estava quase sempre vazia. Colocou na porta um balaio de livros novos, com preços atraentes, sem conseguir atrair compradores. Não teria qualquer outro negócio rentável, a não ser os olhos e a mão funcionando como um ímã a atrair dinheiro. Era destino, maldição, qual o nome disso? Sofreu algum tempo com a sensação de derrota, mas acabou conformando-se.

13

Para manter-se na legalidade, a empresa de Marcial precisava ter um contador e um bloco de notas fiscais. Emitia cinco ou seis notas por dia, referente a vendas que não havia feito, de livros que não existiam, para justificar o caixa, o depósito no banco, a compra de acervos e de livros avulsos, o pagamento dos impostos e a retirada mensal do proprietário.

Resolvera assim vários problemas. Podia ter uma conta bancária, justificar seus ganhos. Burlava o fisco e a administração pública. Estes entes não toleram quem encontra dinheiro na rua.

Estava em paz com as autoridades, não precisava esconder todo o dinheiro – só a maior parte.

14

Conseguira cativar alguns clientes. Gostavam do silêncio ou do pouco movimento do sebo. Traziam de vez em quando livros para vender, e ele os pagava bem, desejando que tal notícia trouxesse mais pessoas; no entanto, sua generosidade não multiplicava a clientela.

Os dias também não se multiplicam, mesmo para um homem de sorte, os dias escorrem e passam. Meses, estações e anos passam.